- Há poucos anos a trás, foi anunciado e depois afixado na Sede da CTMAD um pequeno ‘manifesto’ com a fotografia da casa construída por Aníbal Augusto Milhais. E deixaram-se algumas folhas à disposição dos associados e amigos de Trás-os-Montes a Alto Douro, com o objetivo de recolher muitas assinaturas intencio-nalmente destinadas a constituírem uma Petição Pública, porquanto se retinha válido tal recurso.
Pretendia-se fazer chegar aos Órgãos de Soberania (PR, AR e Governo) um apelo veemente para uma imediata intervenção por quem de direito.
A protagonizar a iniciativa, perdoe-se a imodéstia, estava o signatário e a professora Leonida, neta mais velha do Milhões, representando, obviamente, a família, envolvida no processo.
Já nessa altura havia da minha parte a intenção de levar a efeito uma comemoração condigna do centenário da Batalha de La Lys, a pensar na homenagem da CTMAD ao herói do dia 9 de abril de 1918. Mas o objetivo era mesmo oferecer a Portugal, em Valongo de Milhais, algo que tornasse perene a memória do Milhões: a sua casa restaurada.
Mas, perante as demoras e as inclemências do tempo, as indecisões e a inoperância ou desinteresse dos Governantes e a incapacidade da Autarquia, à qual, entretanto, a família do Milhões doou o imóvel, baldou-se a iniciativa e a sugestão parou ali. Até agora, nunca se chegou à conjugação de sinergias (a entendimento) para se superarem as restrições impostas no ‘período das ‘austeridades’. E, com a falta de verbas tudo se foi desculpando. Até o abandono da ideia da recuperação…
Como se sabe, com os últimos temporais temeu-se a queda daquele pilar da memória, que é referência e não pertence apenas ao plano arquitetónico, mas é sobretudo um espaço a perpetuar.
Conhecemos nomes de muitos artistas, militares, médicos, professores, jornalistas, historiadores, agricultores, poetas e várias figuras notáveis nos mais diversos setores da atividade humana que viram e fizeram crescer a economia e a cultura através da preservação da memória das casas e lugares da sua naturalidade.
Por este País fora as casas reconstruídas contam a história de uma Nação que teima em não usar o passado e a memória para alicerçar o presente e trazer outras gentes com valores ao futuro, pese embora, a certeza de que a cultura atravessa os tempos através das referências e experiências vividas com exemplar dignidade.
Pelo mundo foram e são vários os reflexos da 1.ª Grande Guerra Mundial. Temos visto exemplos que para celebrar o centenário se multiplicaram…
Contudo, Trás-os-Montes e Alto Douro, parece ter ouvido o rufar dos tambores e o toque dos clarins que, já não sendo anúncios de guerra começaram a ser entendidos como apelos para que seja lapidado o diamante em bruto que em Valongo de Milhais se escondeu.
Seria crime deixar desaparecer aquela casa. A história não perdoará a injustiça cometida contra um agricultor que enfrentou o destino e trouxe nome, fama e prestígio para a sua terra enobrecendo-a com a maior prova de valentia e coragem, ao cobrir a retirada dos acamaradas para lhes salvar a vida sacrificando a sua. Ninguém discutiu nem virá a pôr em causa os méritos que os media - dos livros às palestras e às redes sociais e do teatro ao cinema, com autoridade, mestria e rigor histórico, reconhecem, admiram e louvam: - ‘Ditosa Pátria que tal filho teve’...
O que constrange é saber que apesar de tudo… a casa do soldado Milhões, por ele construída, parece estar condenada a desaparecer.
E com ela poderá desaparecer mais um pedaço da memória não só de uma terra como de um povo e de um País, que é o nosso. E há que impedir, a todo o custo que tal aconteça!
Na intervenção que fez dia 14 de abril o presidente da Junta de Freguesia de Valongo de Milhais, Arlindo Paulo Santos Alves, na CTMAD, permitiu deduzir algum desconforto e certa ambiguidade em torno do processo e da preconizada ‘solução’ acalentada pelo poder local e não só. Não obstante a dúvida, confessou acreditar num ideado projeto portador de dignidade, deixando pairar alguma esperança em quem o ouviu.
Conhecemos o proverbial bater da «água mole em pedra dura» o que leva a insistir, acreditando ser dever nosso contribuir para a reabilitação, a fim de se manter e legar aos vindouros, um ´memorial’ do património herdado.
Neste contexto não hesito em repetir enfaticamente o apelo para que não se deixe cair e seja recuperada a casa do Milhões. Que seja conveniente e inteligentemente tratada e resolvida a situação atual para enriquecimento da localidade, por forma a permitir que se valorize e honre exemplarmente a presente geração, plasmada na vivência da história.
Em termos alternativos, é discutível outra hipótese que implicará concordância partilhada (referendada), com ponderação e realismo. Já foi abordada com pouca convicção. Tal proposta consistiria na criação de um espaço (no da casa) como local de interesse público, ao serviço da comunidade, apostando na abrangência cultural, com a qual ganhasse Valongo, ganhasse Murça, a Região transmontana e o País.
Valorizando a função pedagógica, qualquer que seja a solução encontrada, aí se poderiam reviver e incutir valores de lealdade, coragem, altruísmo, trabalho e tantos outros que sempre nortearam este modesto cidadão que, do trabalho rural, se ergueu treinando-se na prática diária da solidariedade que o levava a partilhar o que tinha na aldeia e o impeliu a dar-se pelos outros na guerra.
Dali, irradiará a luz do seu exemplo de honradez e coragem, que contribuirá, ao mesmo tempo, para dinamizar, estimulando e gerando, apoio à dinamização cultural, também turística e económica.
Concluindo: estando neste Congresso, com a liberdade democrática respeitada e levada à prática, o recado não é para se deixar só à Autarquia - qualquer Câmara gostaria de desfrutar o prestígio de ter a casa de um herói nacional. Porém, nas atuais circunstâncias é aos Órgãos do Poder que se torna oportuno apontar o dedo para tantas e até graves situações anómalas que tão clamorosas são nas nossas terras, sendo a casa do Milhões uma delas e bem gritante. E o apelo, ganha assim a pluralidade do entendimento para que se faça justiça.
O resultado do apoio individual (associados ou não) e ‘institucional’ enquanto CTMAD, não dependerá das palavras, mas sim dos factos, capazes de serem propulsores da resposta concreta. E ele satisfará cada um que soube ser, dar e fazer algo pelo bem comum.
Guilhermino Pires (Zé de Murça), 09-05-2018.
(Junta-se folha de subscrição para a PETIÇÃO PÚBLICA, a reproduzir e divulgar…)
Nota bibliográfica:
CTMAD – Livro do II Congresso Transmontano, 1942
Pedro Gomes Barbosa, Património Cultural, cadernos do F.A.O.J., II, julho 1982
João Luís Teixeira Fernandes, Murça: História, Gentes, Tradições, CMM, 1985
António Luís Pinto da Costa, Concelho de Murça (Retalhos para a sua História), 1992
Marcelino Augusto Roger Teixeira Lopes, Murça- Património Artístico, Mirandela, 2000
A casa do Milhões em abril de 2018 – foto de Elsa Bidarra.
Dados em síntese, sobre o Herói soldado Milhões:
O Aníbal Augusto Milhais iniciou o serviço militar no R.I. 30 de Bragança em 13\05\1916; foi transferido para o R.I.19 de Chaves em 16\06\1916;
integrou o R.I.15 de Tomar e de lá partiu para França, como militar do CEP, a 23\05\1917. Na Flandres será o 1.º metralhadora, posicionado sempre à frente do seu batalhão. Em 9 de Abril de 1918 consagra-se como herói, na mais gloriosa gesta de um soldado raso que lhe mereceu o colar de Torre e Espada, só atribuído a altas patentes. Alheio à fama, regressa num barco inglês a Portugal e desembarca no cais de Santos, em Lisboa, dia 19 de fevereiro de 1919; é desmobilizado, mas passa por Tomar (no IR15) onde lhe foi preparada uma festiva receção. Regressa ao IR19 de Chaves (onde iniciara em maio de 1917 a longa caminhada para a aventura militar) e fica por pouco tempo, indo depois para Bragança; em 22 de junho de 1919 é licenciado e pode retomar a sua vida civil; casa-se com a sua Teresa de Jesus, da Ribeirinha, em abril de 1920; um ano depois nasce Manuel, o primeiro filho; emigra para o Brasil em 1924 e regressa meses depois; nesse ano o Diário de Lisboa promove ao herói manifestações de apreço que envolvem toda a Nação; em 1925 passa definitivamente à ‘reserva’, ficando sob a alçada do IR 13 de Vila Real. Morre em 1970, com 75 anos. Está sepultado no jazigo de família em Valongo de Milhais.