É incontestável a diferença de perspetivas entre quem está para lá do Marão a olhar para cá e quem se encontra daqui a olhar para lá; humana e politicamente, estão longe de coincidirem. Estar de trás não é estar de frente. Há, em cidadania ativa, o esconder embusteiro e o enfrentar corajoso: política e socialmente, com ou sem demagogia.
E aqui não está em causa a orientação dos pontos cardeais.
A questão da ‘diferença’ Norte/Sul assenta em patamares culturais e históricos; é uma herança quase genética, vinda do berço. Há como que uma rotina em quem olha do Sul sem se nortear, deixando transparecer, por vezes, desdém, ignorância ou má vontade. Mas o otimismo faz medrar a esperança pela positiva.
Contudo, não é uma distinção exclusiva que os transmontanos e altodurienses portugueses sabem exibir a preceito, sempre que, escondendo inconscientes e malévolas depreciações ou menosprezo, se lhes nega a razão. Não. Mas é um ferrete, ser de lá! Tomás Espírito Santo, quanto ao transmontanismo, dizia ser orgulho!
Em termos sócio-político-geográficos são notórias as diferentes avaliações caracterizadoras, todas elas, de virtudes e defeitos das gentes do Norte e gentes do Sul. Que o diga a Europa de ontem e de hoje: uns mais sortudos do que outros no que concerne à geologia, ao clima, às estratégias, às especificidades psicossomáticas ou temperamentais. Uma coisa é a geografia ‘mapeada’ e outra a realidade da população que vive no terreno, matéria de estudo da sociologia geográfica ou da ‘Geografia Humana’, estudada pelo Prof. Orlando Ribeiro e por outros especialistas em psicossociologia.
No nosso caso, para quem esteja lá, de pés assentes na terra (‘mais perto da Espanha do que de Portugal’), girando-se noventa graus, há, sim, pela frente a opacidade dos montes a impedir-lhe a visão do ’mar eterno sem fundo e sem fim’.
Sabe-se da história não ter sido por acaso que a falta dessa ‘amplidão’ trouxe para a cena dos descobrimentos portugueses alguns marinheiros nortenhos que se fizeram às aventuras das caravelas. E de que modo!
O anseio de mais alto e mais além é comum aos que em tempos idos proclamavam com vontade indomável: «Para cá do Marão mandam os que cá estão!».
A força, sem a razão, impediu que fosse assim. As ‘contínuas desconsiderações’ venceram muitas vezes os de cá, classificados como ‘portugueses de segunda’, ao mando dos de lá. Alguns de cá perderam o fôlego a berrar, enrouqueceram e saíram com a esperança de levantarem a cabeça e de ganharem voz. Terá dito o Prof. Adriano Moreira ter sido ‘a ânsia de crescer e ser alguém’ que estimulou a emigração para o Brasil, a África, a América, e, dolorosamente, a ida «a salto» para a França, Suíça, Alemanha. E também se emigrou cá dentro, sobretudo para a capital, onde, a pulso, se foi evidenciando, desde o século passado, outra ‘classe’ de cidadãos: dirigentes, gestores, autarcas, profissionais da saúde e da educação, militares, eclesiásticos, governantes originários ‘de lá do Marão’….
Todavia, no que ao ter voz diz respeito, há que lembrar que, longe do ponto de partida para um lugar «por de trás dos montes», se alimentava e alimenta o sonho. Olhando de cá, no tempo e no espaço – e aqui/agora no âmbito de um Congresso promovido para se pensar em lá –, não é tolerável a displicência de cá com as ‘costas voltadas’ do passado (de sempre); como não deixa de ser significativo ter de frente os contributos materiais e intelectuais que de lá vieram e vêm (e por cá ficaram e ficam). Pelo meu retrovisor ainda consigo tirar nabos da púcara, com alguns anos, para ver objetivamente o que estava e está distanciado. E, com a mesma visão, sem reduções nem ampliações desfocadas, mas com o realismo das sobras, alimentar a esperança de que os preconizados benefícios do Congresso venham a concretizar-se num claro, sensato e realizável pacote de conclusões.
Que elas tragam no ventre capacidade e competência para se promover o ‘volte-face’ dos decisores e mandatários agentes da igualdade e da justiça, voltando para lá atenções, interesse, projetos de desenvolvimento. Cabe aos Órgãos de Soberania, zeladores da Constituição, garantirem a igualdade de todos os portugueses: de lá e de cá do Marão. Com iguais oportunidades e apoios, desfazendo assimetrias.
Não se apaga a memória de que certos ‘governantes’ naturais de lá, apesar de muito meritórios e notáveis, estando ‘longe da vista, longe do coração’, seguiam por cá a moda do esquecimento sistemático. Deixaram ‘esborralhar’ paredes e telhados com história; taparam os olhos à degradação do património natural e construído.
Por isso, têm sido os que de lá são e lá ficaram, ‘os últimos’ a beneficiarem de estruturas civilizacionais: saneamento, água canalizada, energia elétrica, estradas, transportes, combate a incêndios, SNS, pontes, uma autoestrada e um túnel. Tudo isto, porém, em troca do abandono do caminho de ferro, de um despiciendo impulso à agricultura sem regadio, de apoios quase nulos ao comércio local, à indústria, à exploração do subsolo, às instituições culturais. No entanto, lá em cima, são os que lá estão que continuam a lutar pela sobrevivência de valores imperecíveis e a manter a dignidade do povo que não renegam.
Quanto prejuízo à produção e à operacionalidade de alguns empreendimentos que foram referências e deixaram de o ser!... Fecharam-se serviços e escolas (o grande pedagogo S. João Bosco, advertia: «abrir uma escola é fechar uma prisão»). Parece ter-se entendido, por cá, o contrário… Por lá, nem os tribunais escaparam à austeridade.
Isto de chamar à memória o negativo de experiências vividas e sofridas num passado ainda recente ‘por detrás dos montes’, não deixa de ser caricato. É. Mas as cicatrizes que ficaram não são medalhas de mérito. Em Trás-os-Montes e no Alto Douro vinhateiro (património da Humanidade, com imagem de marca) é inconcebível que se mantenha o ferrete do atraso. Denunciar isto, proclamá-lo cá, com e pelos de lá, mais que dever, é obrigação. Urge ‘berrar’, reivindicar, propor, participar, colaborar e abrir novos horizontes; urge sobretudo fazer. São palavras-chave. Torna-se obrigatório atribuir-lhes o sentido que têm e não outro.
Foi também por isso, quero crer que sim, que se pensou e organizou este IV Congresso.
No nosso regime democrático é impensável manterem-se as assimetrias que só podem persistir pela inoperância, displicência e falta de visão arrojada de quem está no centro das decisões (por detrás ou de frente dos problemas estruturais da Nação como um todo). Os Orçamentos e Planos não se podem basear nem baseiam em situações demográficas nem em resultados político-partidários ou na recolha de contribuições e impostos.
É isto demagogia? Talvez não. Da discussão vem a luz. Polemize-se, conteste-se, alimentem-se dialéticas com sentido. Saiba-se tirar (diria destilar) algum sumo de tudo. Bem espremidos, mesmo dos restos se faz fertilizante…
E o que se espera do Congresso? Para além de doutas, sábias e proféticas palavras, haverá propostas. Esperemos que haja também muitos frutos, resultantes da criatividade e da conjugação de esforços.
Ora, tornando ao título por detrás dos montes – na modesta opinião de quem não serve qualquer ideologia político-partidária, mas ama a terra onde nasceu e a quer nivelada pela pauta do progresso –, importa relevar que:
1. A travessia dos montes sempre se fez mais de lá para cá do que ao contrário; e quem galgou os obstáculos (de todo o tipo), foram as ‘pessoas da diáspora’, sabiamente identificadas pelo Prof. Adriano Moreira. É patente uma situação crítica muito grave.
2. As razões fundamentais do êxodo (hoje chama-se desertificação) residiam – e ainda residem – na falta de visão (digo cegueira e injustiça) dos que, estando cá, afeitos ao poder, não olharam e ainda não olham suficientemente para lá, por deformação da ‘consciência’ e desinteresse (digo falhas de sabedoria e competência) do sentido de serviço a prestar, sem transparência de ideias e atitudes comportamentais coerentes. É redundante a falta de princípios de equidade, para ser vencida a opacidade dos montes, potenciando-se a implementação do desenvolvimento ‘integral’ – igual para todo o País único que somos. Importa considerar, mais uma vez, que se valorizou pouco o interior norte e nordeste, desdenhando as ‘mal dimensionadas’ (porque enormes) riquezas/recursos e capacidades produtivas, culturais e também turísticas. Têm-se engendrado argumentos preferenciais, concedendo maior facilitismo por conveniência (discutível) para o investimento no litoral e no Sul.
3. Não obstante o tal ‘ostracismo’ a que se votava (e ainda vota) o Norte (de lá do Marão), os naturais continuaram e continuam a superar-se a si próprios no esforço pela preservação, desenvolvimento e vivência dos autênticos valores regionais e pátrios; porém, o risco de serem os jovens a saírem – em busca de melhores condições de vida e de um futuro promissor, que o lugar onde nasceram não lhes permite sonhar – parece não ter merecido ainda a atenção de quem de direito, a nível central e local. Mas está na hora de agir! É legítimo esperar a força dos apelos do Congresso.
4. E justificam-se as perguntas: que políticas se vão adotar, diferentes, atuais, mais previdentes do que providentes, a nível autárquico e nacional, para normalizar e melhorar o fluxo demográfico e fixar as jovens gerações como agentes ativos de renovamento e reconstrução? Enquanto ainda estão marcadas pela fidelidade ao testemunho desse carácter forte, com o qual se orgulham e gostam de se identificar perante os cidadãos de cá, como sendo ‘de lá do Marão’, com que poderão elas contar?
5. Neste Congresso deverão apresentar-se claramente as cartas (também geográficas), suscitando a reflexão séria e construtiva, voltadas de frente, para que se olhe mais e melhor por detrás dos montes. Tem-se ‘glosado’ e falado de ’regionalização’. Além de ridículo, o arrastamento deste tema, sem fim à vista, é, por si só, triste. Contudo, se for por diante, duvida-se das eventuais vantagens a trazer ao Norte, ao nosso Norte – transmontano alto-duriense. Referendá-lo? É uma pergunta. Por outro lado, por detrás, para lá dos montes, estando comodamente instalados por cá, poderá surgir outra pergunta lógica: Deste Congresso haverá conclusões abrangentes que se divulguem para congregar numa dinâmica de conjugação do verbo fazer no presente do indicativo, todas as forças vivas por detrás dos montes?
6. Finalmente: alguém, na CTMAD, sem olhar para trás, se voltou de frente para as questões fundamentais, há muito suspensas, que afetam os que lá estão e os que de lá são; resolveu investir intencional e culturalmente com a prestação de algum contributo discursivo, por enquanto, na linha da reflexão conjunta para a implementação do progresso por detrás dos montes, independentemente do posicionamento e de outras perspetivas estranhas. Impunha-se. É pertinente. Mas são requeridas respostas às perguntas que deixo. Comigo, os associados da nossa Casa em Lisboa, revestem-se de esperança. A. Guilhermino Pires (Zé de Murça)